Resenha: Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência

23/07/2019

Montesquieu.

Tradução e Introdução de Saulo Krieger.

São Paulo: Edipro, 1ª edição, 2017. (206 páginas)

ISBN: 978-85-7283-998-3

Original publicado aqui.

Na leitura desse livro de Monstesquieu, não posso deixar de crer que o autor foi aclamado pela obra errada. Enquanto vários trechos Do Espírito das Leis (São Paulo: Martin Claret, 2003) oferecem uma leitura seca; a apresentação sobre Roma faz exatamente o contrário. Ou seja, quero dizer que Monstesquieu não somente apresenta uma civilização de forma teoricamente insigne, como também de modo literário sublime. Praticamente falando, o único pecado do livro é a presença de alguns poucos erros históricos devido à disponibilidade historiográfica que Montesquieu tinha, não sendo possível culpá-lo por eles.

Ao contrário de grande parte das análises e registros históricos, as Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência apresentam uma visão aparentemente sóbria. Quer dizer, não há uma mitificação de personagens históricos ou nada do gênero. Como nos diz o próprio Montesquieu, seria preferível que Tito Lívio[1]apresentasse seus registros de forma mais objetiva, como Homero apresenta a sua ficção.

Bem, dados esses comentários mais gerais sobre a obra, é importante dispor agora questões mais específicas sobre o conteúdo do livro. Na apresentação do Reino de Roma, Montesquieu mostra uma compreensão que só parece ter sido efetivada por completo no século XX. Foi Norbert Elias, sociólogo alemão, quem tomou como imprescindível a análise do que chama de estruturas de habitaçãopara chegar a certas conclusões sobre as estruturas sociais. Como nos diz o 3º capítulo de seu A Sociedade de Corte(Rio de Janeiro, Zahar, 2001 p.67), mesmo que as formas ou tipos exatos do convívio não possam ser compreendidas, integralmente, por meio de categorias espaciais, elas podem o ser tambémpor meio das ditas categorias. Assim, seguindo quase de forma absoluta o que Elias propõe, Montesquieu fundamenta grande parte de sua análise na disposição espacial e, portanto, nas assimetrias da cidade de Roma nesse quesito; mostrando, desde o início, que Roma não partiu de nenhuma posição prévia de grandeza, mas de uma situação privada extremamente precária, sem ruas, com cabanas como residências e caos desses espaços. No entanto, no ambiente público, o primeiro período monárquico de Roma parece ter iniciado a tradição de grandes obras. Ao contrário, mais tarde, o Império Bizantino parece ter sobrevivido (segundo o livro) pela razão contrária: o privado garantia o império apesardo público.

Como a maior parte dos registros até hoje, Montesquieu rapidamente dispensa as falas sobre o Reino de Roma, tomando bastante da história da República Romana[2]em mãos. Segundo ele, a robustez da beligerância da res publica parte do fato dos cônsules precisarem marcar seu nome através da distribuição de butins e da manutenção do orgulho romano(não exatamente as palavras de Montesquieu, mas uma expressão precisa delas). Quer dizer, os romanos estavam "por princípio de governo, necessariamente fadados a perecer ou a derrotar todos os outros, que, vivendo ora na guerra ora na paz, jamais estavam tão prontos a atacar nem tão preparados para se defender" (Adaptado de p. 37).

Postulando outros fatores para a grandeza dos romanos, Montesquieu aponta o fato de que, "tendo combatido sucessivamente contra todos os povos, eles [os romanos] sempre renunciaram a seus costumes tão logo encontraram outros melhores" (Adaptado de p. 34)[3]. Isto é, o povo romano, provavelmente devido à sua sociogênese[4]marginal, era inclinado especialmente à assimilação cultural. Parece deveras que, havendo uma ordem espontânea[5]entre os romanos sobre melhorias civilizacionais, esses conseguiram propriamente avançar em uma espécie de seleção natural das civilizações.

Talvez a mais importante guerra travada pelo povo romano, a Segunda Guerra Púnica[6], contra Cartago, seja também a última das que Montesquieu chama de pequenas vitórias e grandes guerras, e o ponto de início dasgrandes vitórias e pequenas guerras(p.62). Pela apresentação de Montesquieu, tornam-se flagrantes as estratégias e táticas utilizadas pelo Senado Romano na consecução da guerra. Para o autor, a guerra pode também ser vista a partir de um conflito entre a riqueza de Cartago e a virtude e constância de Roma. Entre ambos, sabe-se ser fato que, como o livro mostra, a recusa do Senado em propor a paz a partir de uma posição que não a vitória iminente foi decisiva para a manutenção do esforço de guerra.

Nos capítulos V e VI das suas Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência, Montesquieu parece remeter-se de forma mais específica a uma análise maquiavélica in stricto sensu. Reflete ele sobre como os príncipes, no sentido mais amplo, são, em grande medida, aptos à batalha, mas inaptos à guerra e à fortuna. Mais adiante, o autor constata a obediência severa dos romanos ao princípio de Machiavelli de que os grandes Estados tomam grande proveito em aliar todos os pequenos vizinhos de seus grandes inimigos. Também em cumprimento estrito das futuras postulações de O Príncipe (São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010), o Senado concedia suposta liberdade legal para várias cidades, mas votava sempre com o princípio de que "como lei só havia a vontade dos romanos" (p. 73). No mesmo contexto de análise política, o escritor trata da robustez da República Romana. Para ele, a rotatividade anual dos magistrados, que incitavam o Senado (p. 36), fazia com que, mesmo já no curso da prosperidade, o Senado agisse na mesma profundidade (p.62).

Em algum sentido, a leitura das Considerações de Montesquieu mostra que, em algum ponto na história, Roma não era mais uma cidade, um Estado ou um povo - nem tampouco era uma lenda do maior tipo ainda. Seria mais como se os romanos tivessem tomado para si um status de mediador universal, como talvez seja a Organização das Nações Unidas hoje, só que com grande poder e desejos autônomos. E, nessa condição, parece que realmente tudo se fazia dentro da política e da guerra para "dar aos romanos todo o dinheiro do mundo" (p. 78). Mesmo assim, contra toda expectativa razoável que fosse projetada desse momento, o modelo de Estado e de sociedade romana perdeu contra o dos bárbaros. No medievo foram as variações feudais que se instalaram, não repúblicas ou grandes impérios - e, como o livro mostra, a sociogênese do feudalismo se deu nas nações germânicas.

Para começar então a reversão da grandeza à decadência, Montesquieu lembra-nos finalmente de algo que parece sereno e sublime até esse ponto do texto. "Enquanto Roma conquistava o universo, havia em suas muralhas uma guerra oculta" (p. 85). Inicialmente havia o conflito dos plebeus e dos patrícios, mas logo essa ordem substitui-se por uma outra: nobres (optimates) e plebeus (populares). E nessa segunda ordem tomamos a distinção social que Montesquieu define como aquela que é mais rígida e, destarte, mais inclinada à implosão.

Esse quadro de autodestruição pôde ser observado apesar de toda extraordinária robustez institucional que Montesquieu nos mostra - na qual "todo abuso de poder podia ser sempre corrigido" (p. 90). E tal fato, como nos dizem as Considerações, se deve à República ter adquirido sua escala continental, os soldados "não foram mais os soldados da República, mas de Sila, de Mário, de Pompeu, de César" (p. 91). E foi no momento que a plebe pôde apontar pessoas para as posições desses grandes líderes legionários que a capacidade senatorial se esgotou, resultando em uma acelerada decadência; do mesmo gênero da grande decadência observada nos últimos cento e trinta anos no Brasil, desde a queda do Poder Moderador no Golpe de 1889. Para o autor, as leis de uma pequena república tornaram-se inadequadas para a manutenção da grandeza uma vez atingida. Impressionará o leitor notar que já no século XVIII, do qual nos escreve o barão[7], ele faz a apologia da Suíça. Uma demonstração empírica e lógica do melhor tipo: Montesquieu sugeriu sua robustez e, de fato, a república na Suíça sobreviveu à provação do tempo, sobrevivendo quase constantemente desde o século XV (fundada antes, mas somente reconhecida de facto nesse momento). E não somente nesse ponto temos uma espécie de profecia, como as explicações a respeito de Estados pós-guerra civil explicam o futuro, para Napoleão e, de forma mais ampla, para Hitler.

De toda a força das instituições romanas, o escritor parece achar que uma coisa sobreviveu: o espírito (ethos) heroico. E ele apresenta isso junto à crítica romana do comércio, pasmando o leitor que sabe perfeitamente que essas são as mais fundamentais características protonazistas (de Sombart, Carlyle, List, ...). E segue Montesquieu para nos narrar a queda da república, com César e Otávio, tendo o primeiro sido o único romano além de Rômulo até então a ser aclamado como divindade pública.

Se Roma havia se erguido em decorrência de determinadas máximas, temos o apontamento de Montesquieu de que, em sua queda, todas elas haviam sido invertidas. Guarnições foram trocadas por estruturas, a guerra incessante por uma paz tributária, a lealdade à Roma pelo hábito bárbaro de abandonar uma luta na iminência de perder, a infantaria pela cavalaria, dentre outras. Tudo o que a jovem res publicaedificou, sua velhice e o império condenaram. E não somente o Estado corrompeu-se internamente, como a infiltração das lideranças religiosas cristãs na política fez dos imperadores reféns dos patriarcas. Conforme nos apontaria também o conservadorismo de Burke, não fez bem aos romanos mudar totalmente e das formas mais arbitrárias o sistema há muito estabelecido.

Em suma, as Considerações nos apresentam formulações teóricas que antecedem a futura tradição dos estudos das ciências sociais e, em especial, da ciência política; tal como traçam previsões que se concretizaram de forma espetacular. Isto é, a história se desenrolou como nos aponta a teoria de Montesquieu, provando a sua atualidade presente na visão falibilistapopperiana e mais ainda na visão da lógica formalconsolidada pela tradição escolástica[8]. Essa é uma leitura essencial para aqueles que visam compreender o desenrolar da história nos últimos três milênios.



Referências.

AQUINAS. Suma Teológica. s/l: Ecclesiae, 2018.

BEARD, Mary. SPQR.Trad. Luis Reyes Gil. São Paulo: Planeta, 2017.

ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

_____. O Processo Civilizador. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

HAYEK, F.A.O Caminho da Servidão. Trad. Anna Maria Capovilla, José Ítalo Steele, Lione de Morais. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

MADDISON, Angus. Contours of the World Economy 1-2030 AD. Oxford: Oxford University Press, 2007.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Marício Santana Dias. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

MONTESQUIEU.Considerações Sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Edipro, 2017.

_____. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2003.


[1]Tito Lívio era um historiador romano que parece ter vivido durante o período republicano. Apesar de ser uma das escassas fontes sobre a história do Reino de Roma e da República Romana, a mitificação de sua obra é bem notória, como nos aponta não somente Montesquieu como Mary Beard, professora de Cambridge.

[2]O nome correto da República Romana era Senatus PopulusQue Romanus (SPQR).

[3]A adaptação se deve à preferência por certas formas da tradução antiga.

[4]Conceito criado pelo sociólogo supracitado Norbert Elias para se referir aos processos de formação das estruturas políticas e sociais, tais quais o feudalismo e o próprio Estado, em seu livro O Processo Civilizador.

[5]Conceito elaborado principalmente por Friedrich A. Hayek, economista austríaco, para explicar o "caos organizado" econômico e social. Sobre isso, recomenda-se: The Fatal Conceit.

[6]A Segunda Guerra Púnica foi aquela na qual o principal general cartaginense era Aníbal. Perdendo a guerra, Cartago nunca mais voltou a ser uma grande potência e, eventualmente, tornou-se de jure e de factode Roma.

[7]Montesquieu era Barão de Montesquieu, sendo seu nome real Charles de Secondat.

[8]Para conferir o pináculo dessa tradição, Ver: AQUINAS. Suma Teológica. s/l: Ecclesiae, 2018.

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